quarta-feira, 14 de março de 2012

O poder da mente

Sou um pouco supersticioso. Não entendo bem por que, mas evito passar embaixo de escadas, bato 3 vezes na madeira quando necessário (e possível, pois o mundo é cada vez mais feito de plástico), entro e saio com o pé direito de diversos lugares, faço pequenas apostas comigo, e tento desviar do caminho de gatos pretos.

Não é sempre, mas com os gatos, por exemplo, tento refazer meu trajeto para não cruzar com a linha imaginária sobre a qual acabaram de passar, ou fico tentando mantê-los num canto, para que eu passe ao lado, ao largo de seus caminhos. Nesse dia não foi possível. O bicho saiu de surpresa de baixo de um carro, atravessou rapidamente a calçada, bem a minha frente, e entrou numa oficina.

Fiquei em situação complicada. Não conseguiria simplesmente fugir do seu rastro porque os carros estacionados estavam praticamente grudados uns nos outros, e precisaria voltar um bom pedaço para poder ganhar a rua e vir caminhando por ela. Por outro lado, me pareceu especialmente ridícula a possibilidade de entrar na oficina para contornar o gato. Ademais, tinha alguma pressa, como de costume.

Sem alternativas, rompi a fronteira imaginária com galhardia, mas, como sequer lembrava com qual pé entrara no universo que há após o traço invisível desenhado pela passagem de um gato preto (pretíssimo... nem uma manchinha!), decidi colocar em movimento o mecanismo de autonegação que – ao menos para a superfície de minha racionalidade – trouxe algum alento. Com a repetição exaustiva do pensamento “que bobagem, isso não é nada, não significa nada, não tem nada a ver...”, comecei a tentar me enganar.

Mas a impressão da situação continuava gravada em mim, e a precisão do gato ao me confrontar em momento tão indefeso era particularmente intrigante. Dali pra diante, não tive mais sossego. Alguns passos à frente, um par de senhoras caminhava de braços dados numa velocidade desconcertantemente lenta. A calçada, não tão estreita, permitia uma ultrapassagem certeira pela canhota. Mas – espanto! – tive que refrear o instinto de utilizar o nitro, e disparar no turbo, ao notar a presença de uma escada marota, apoiada sobre a marquise subseqüente. Preferindo não acumular os azares, esperei as senhoras passarem pela escada para fazê-las comer minha poeira.

O caminho para o trabalho é curto e eu já estava no final quando tudo isso aconteceu. Sinceramente, depois de tanto tempo vindo de Niterói para o centro do Rio acompanhando a crescente precarização do serviço oferecido pelas Barcas S.A., não pensava em conseguir tamanha “aventura” nos meus 15 minutos diários de caminhada. Mas as pessoas paravam subitamente a minha frente, me fechavam sem o menor aviso, carros avançavam para cima de mim, vinha uma bicicleta na contra-mão quando eu estava olhando para o outro lado. Eu já estava achando tudo engraçado, mas continuava repetindo que “não era nada...” por precaução.

Até que vi os sujeitos da prefeitura. Enquanto um escorava uma rede de proteção, o outro passava o cortador de grama num desnível do caminho. Eu vinha caminhando pelo lado oposto da rede, que protegia aos passantes do outro lado do canteiro. Tive certeza, na hora que os vi, ainda de longe: vai voar alguma coisa em mim, era só o que faltava!

E não é que, quando eu passei pelos caras, uma pedrinha acertou o meu joelho!? Ri no mesmo instante, de alívio. Mas depois, me deixei devanear um pouco sobre o ocorrido. A pedra poderia tomar qualquer direção depois de chicoteada pelo fio de nylon que esses cortadores de grama usam; qualquer minúscula diferença no meu trajeto seria suficiente para me desviar da mesma pedra – se não tivesse esperado para passar pelo par de senhoras, por exemplo; os caras poderiam tentar 3 bilhões de vezes, com as mesmas condições, e jamais lograriam me acertar novamente a pedra etc. Em suma, o movimento da pedra até o meu joelho foi muito preciso e, pra mim, das duas uma: ou eu atraí a pedra até mim, ou previ que a pedra me acertaria.
E importa pouco qual das duas está certa. Afinal, nenhuma das duas pode ser explicada sem um leve constrangimento metafísico.

No caso, encontrei a explicação que mais me apeteceu: fiquei tão impressionado por uma convicção que transcende minha racionalidade que acabei fazendo uma ‘mágica’, um ‘milagre’ com a força do meu pensamento. Infelizmente, para o mal. Não que a pedra me tenha machucado, nem que se tenha concretizado minha previsão seguinte: de que meu joelho estaria prestes a estourar e a pedra seria, disto, um aviso. De fato, quando me dei conta que afundava em especulações sobre rompimento de ligamentos cruzados, dei um basta, e parei com a baboseira. Parei de me condicionar a lesionar o meu joelho que, obediente, já doía um pouco.

Mas fiquei marcado pela possibilidade de projetar coisas. O grande passo, contudo, está em acreditar nos meus sonhos como, involuntariamente, creio nas minhas superstições. Tê-los como amálgama disforme e indescritível e deixar que me guiem através da vida. Pressinto que saberei fazê-lo, um dia.

Publicado originalmente na terça-feira, 28 de setembro de 2010, em http://amigomamute.blogspot.com/

6 comentários:

  1. Engraçado como é possível alimentar o misticismo ao mesmo tempo em que se desdenha de tradições mágicas.
    Nego tá mexendo com isso faz tempo. Tentando manipular a realidade e descobrindo sempre novas abordagens teóricas e práticas para lidar com toda a sorte de gatos pretos.
    Mas ultimamente, não sai da minha cabeça uma visão.
    A de que "não ver nada", não sentir nada de sobrenatural é o maior dom mágico de todos.
    Pois "não ver nada" é justamente cancelar todas as outras possibilidades de realidade que o universo apresenta a todo instante e criar algo que é.
    Cancelando "todo o resto", temos criação e beleza com direcionamento. Criamos o universo com precisão.
    Todo o conhecimento gira em torno de apontar "o que não é", pois aquilo que é, é inapontável.
    O grande problema é que aprendemos a confundir "criação precisa" com "realidade", e ficamos presos numa existência surreal, onde somos roteiristas, diretores e atores a um só tempo.

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  2. Eu tenho ideias ultra complexas e avançadíssimas dentro da minha cabeça mas não tenho nenhuma habilidade para transmiti-las. Por isso eu uso vários termos com aspas numa tentativa esperançosa (e patética) de fazer quem os lê apreender algo a mais.

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  3. De fato elas talvez não sejam nem um pouco complexas ou avançadas, mas eu gosto de acreditar que elas são e que eu sou um cara esperto por pensar assim.

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  4. Ansioso pelo "sucesso", Diona!? Essa série de comentários ilustra com perfeição a questão da meritocracia levando aquém! Portar ideias complexas e avançadíssimas é um fator que admiro em você. Isso aproxima nossas existências e ajuda na forja das afinidades que subsidiam a manutenção de nossa amizade. Não necessito que sejam exatas essas ideias suas. Necessito que existam, que hesitem, mas ganhem o mundo. Que essas trocas, ainda que esporádicas, fortalecem nossas próprias consciências, aumentam nosso traquejo frente ao fluxo é complicado negar. Porém, derivando os atributos mensuráveis, somos um nódulo de individualidade dedilhando supercordas... E é tão difícil comparar sua competência de chegar a conclusões brilhantes à do mendigo que acaba de achar uma nota de 50, que é melhor nivelar a todos na mesma boa intenção de fazer de nós próprios o melhor possível, que nos resta culpabilizar o sistema de distribuição de méritos e prerrogativas como grande responsável pela deformação e frustração da potencialidade de cada indivíduo sempre única, e sempre mágica... Como a sua. Só não me venha comentar sobre sucesso de forma quase inocente, para mostrar um pouco de uma reflexão brilhante no comentário seguinte e, ato contínuo, fazer um mea-culpa da afirmação real, mas falsa, de que és o gênio que, de fato, eres.

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  5. Acho que você tem toda razão.

    Só acho que a "meritocracia" de que falamos é diferente. Ao meu ver qualquer mérito só é possível em âmbito ontológico e divino. Nenhum humano é capaz de qualquer real vontade.

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