segunda-feira, 25 de junho de 2012

A mais importante das coisas menos importantes - um raso estudo sobre a explosiva e problemática relação entre mulheres, alcóol, drogas e futebol!

            Por introversão, em situações de solidão e isolamento, como acontece muitas vezes quando estou viajando para fora do país, jamais consegui simplesmente perguntar a pessoas desconhecidas, mas aparentemente interessantes, o que elas fariam naquela noite, ou para onde diabos estariam indo. Em suma, puxar assunto – e mesmo explorar os fios de meada que eventualmente tentam arrancar de mim – não é o meu forte. Por isso, desenvolvi uma técnica (que não funciona direito, aliás) para tentar contornar a timidez paralisante que, embora revelada geralmente sobre protestos incrédulos, me acompanha desde garoto. Trata-se, afinal, de perseguir pessoas com perfis exóticos, belezas pronunciadas ou vestimentas elegantes (para os meus padrões bermuda-camiseta-e-all-star-quando-as-havaianas-não-são-possíveis) pelas ruas. Tendo tempo, tudo é possível. E gosto de ter tempo quando viajo.

Naquela noite, foram duas meninas. Uma baixa, com cabelos morenos muito curtos e saião hippie e uma loira alta aparamentada de adereços anacrônicos. Como o chapéu-panamá, que – de origem equatoriana apesar do nome, provavelmente manufaturado na china, e repousando sobre aquela cabeça griga em plena capital espanhola – atendia com louvor minha ânsia por exotismo! Por tamanha conjunção, desbravei lentamente uma parte até então desconhecida da cidade no encalço das duas. Até que, para minha surpresa, as moças sentaram num banco de uma das várias praças do lugar e puseram-se a conversar.

Sujeito direito, e interessado apenas na carona, sentei numa amurada mais afastada, próximo a um semi-senhor (ou um semi-jovem chumbado) e um garoto, completamente alucinados e vermelhos.  Pareciam ingleses e cantavam velhas canções punk de forma tosca. Perdi as meninas de vista escutando-os e observando o resto do movimento, que, afinal, não era grande coisa: pouco adiante um pessoal uniformizado, provável equipe de limpeza, se espremia num dos bancos e conversava, havia os incansáveis vendedores de cerveja, uma galera batendo bola na outra extremidade da praça e alguns outros perdidos, como eu, que filmavam ou fumavam o que lhes apetecia.

De minha parte, estava bastante animado, pois bebi sozinho o que acostumei a compartilhar com meu irmão nas aberturas das três noites que passáramos juntos naquela cidade. Mesmo assim, comprei uma cerveja com um dos ambulantes e bebi quase tudo num largo gole. Intrigado, começava a tentar decifrar as regras do improviso desportivo que se desenvolvia naquele canto de praça quando um dos doidões ingleses me pediu um pouco de tabaco.

Embora o tenha atendido sem muita convicção, ele perguntou, agradecido, se eu fumava (e o itálico vem aqui para substituir um trejeito inconfundível: um arqueamento de sobrancelha seguido de um meneio com a cabeça, que, apesar de a frase ter sido dita em inglês arrastado e estarmos todos significativamente bêbados, não permitia a menor parcela de dúvida para a adequada interpretação do maneirismo aparentemente internacional, objeto, muito improvavelmente, de um futuro estudo detalhado sobre a linguagem universal dos doidões). Respondi que sim, ainda sem muita euforia.

Suspeitei desde o princípio e, conforme o previsto, após perscrutar suas coisas, o resoluto rapaz pousou uma pequena pepita em minha mão. Também grato, consumi metade no ato e, já zaralhado, tentei guardar a outra parte no cantinho do banco que busquei para aquele fim escuso. Obviamente, o regalo não estava lá quando, mais tarde, voltei para tentar o resgate, já com o peso de coração e consciência motivadores deste escrito – a tal coisa escrota ainda por contar.

O fato é que, com o concurso do aditivo imprevisto, minha animação cresceu e o mundo ganhou um novo e inusitado colorido. Estancou-se a psicodelia: a equipe de limpeza parecia mais alegre e ruidosa, e finalmente me dei conta da fosforescência de se seus trajes; um dos dois doidões foi embora cantando Misfits, o outro deitou e dormiu ali mesmo; os vendedores ambulantes pareciam trabalhar com vigor renovado, embora seguissem sem qualquer expressão... Eram meus olhos, certamente, mas coisa vasta para a antropologia mundana, talvez um pouco enrustida. Vagava a vista enquanto ainda podia, pois, em poucos instantes meu interesse pelas maravilhas daquele universo seria completamente soterrado pela observação maníaca do jogo, que continuava sua febril celebração aos deuses do esporte mais popular do planeta ali na canhota do meu campo de visão.

Bêbada e marotamente, me aproximei. Vi melhor o que já conseguia perceber de longe: aqueles caras pareciam tanto com alguns conterrâneos meus (as galeras das peladas, a molecada da rua), que só tive certeza que não eram de algum ermo – de um interiorzão qualquer desses nossos, com o sotaque insondável para urbanóides semi-literatos como nós – depois que tentei por três vezes entender o nome do lugar de onde vinham, sem qualquer sucesso. Segundo eles, em simplificação corriqueira e recorrente, trata-se de um pequeno país próximo a Bulgária. O ponto é que, ademais do espanhol simples em que nos comunicávamos, falavam um idioma que parecia a insólita mistura de russo com árabe, ou – ainda pior! – algum dialeto desta surreal composição lingüística: o russárabe!

Falavam exatamente como qualquer matuto nosso, ou latino, que gosta de bater bola. Tardei a assimilar a força da disseminação mundial de arquétipos comportamentais (trejeitos, manias, piadas) orbitando o mundo da bola, especialmente o futebol. Como cada cultura, tão específica, vive esse mesmo fenômeno? Afora a complexidade do conceito: lembro de ter passado horas conversando com um cubano sobre brincadeiras de rua da molecada e, sempre que ele relatava o “jogar bola” de seus tempos de pivete de Havana, imaginava os gols de chinelo e a bola dente de leite rolando, mesmo depois que me dei conta que ele se referia ao basebol todo o tempo...

Em todos os poucos países em que tive o privilégio de jogar, ou mesmo só ver de perto uma pelada, constatei o mesmo ânimo, a mesma gana, aquela coisa (talvez a única) que liga o craque milionário fazendo o gol do título numa final de copa do mundo ao moleque chutando uma latinha na madrugada fria. O jogo, através da domesticação da potencialidade infinita da combinação de uma ou mais pessoas com uma bola, acaba por criar uma linguagem paralela - mais de gestos e grunidos, mas também olhares, gritos, oferta e aceitação de desafios - com alto grau de complexidade. Sinceramente, não imaginava que fosse algo tão eficiente... Mas deixo tais digressões para o futuro e improvável estudo, pois aqui apenas me estendem a crônica desnecessariamente.

Dentre o pequeno grupo, havia de tudo: além do trio de magrinhos habilidosos (um de ar soturno, bermuda azul piscina, camisa xadrez e tênis vermelho, outro ostentando um topetinho, calça jeans e camiseta, e o último encaixado em uma insólita jaqueta de couro), os dois primeiros sendo os craques das duplas em jogo, os dois gordinhos completando as duplas e mais um grandão do lado de fora, este rindo de praticamente todas as troças e pilhérias disparadas durante as partidas, boa parte delas dispensando o conhecimento do idioma para uma captação competente de seu teor. Eram figuras tão familiares que, mesmo após meia hora ali, me pareciam estar prestes a confessar, já em português, que haviam reconhecido a camisa do flamengo (retrô!) e estavam tratando de me pregar uma imbricada peça.

Personagens como o gordinho que nunca jogava, mordiscava amendoins infinitos e gargalhava feito um monstro a cada jogada bisonha ou piada interna, já conheci mais de dez! O careca, baixinho e rechonchudo, sacana principal de um dos times, que dava alguns toques na bola enquanto zoava tudo e todos, esse tem também uma boa dúzia de sósias espirituais brasileiros. E o barrigudo? Toda vez que lhe tocava buscar uma bola colocada com mais vigor (e ela evitava, tinhosa, o último obstáculo que poderia encurtar seu desgoverno e todo anti-magnetismo que assume nestes momentos), ele estacava, virava inconformado para seus colegas, ódio brando estampado no rosto inexpressivo, e, sem emitir qualquer ruído, continha os braços que já quase abriam, baixava os ombros quase soerguidos e retomava seu caminho até a pelota em passos exageradamente lentos... Um barrigudo daquele existe em cada boleiro que já tive o prazer ou desprazer de conhecer!

Começava a entender o jogo, que não parecia difícil. Uma espécie de futevôlei sem rede. A bola podia dar um quique e, depois disso, ficar no alto o tempo que fosse necessário (e possível para a habilidade de cada dupla). Ainda tentava entender a regra dos saques quando pedi para jogar. Soprou o vento frio do gelo breve que me dedicaram, mas, quando se aproximavam do final da contagem incompreensível, o gordinho fanfarrão perguntou se eu tinha algum parceiro. Eu disse que poderia ser o outro cara que estava de fora, o da jaqueta de couro, sem ser o bonachão de riso frouxo e capacidade invulgar para o consumo de amendoins, ainda que de forma muito mais concisa e tosca do que o aqui descrito. Ao celular, o sujeito me acenou do outro lado da quadra aparentemente concordando. Dali a alguns minutos, para instaurar de vez minha perplexidade, me deixaram jogar.

Formei com o cara do topetinho, e cheguei – sem querer, mas cheio de marra! – confirmando os limites da quadra e perguntando as regras que não tinha conseguido decifrar apenas observando. Para meu desespero, um deles reconheceu mesmo a camisa, ou o acento, e perguntou se eu era do Brasil. Confirmei encabulado, ao que todos, eufóricos, lançaram um urro de desafio e excitação, aumentando significativamente minha responsa e nervosismo. Nunca fui craque, mas imprevistos acontecem e algumas vezes pendem para os milagres! Agarrava esta última esperança, mas não deixei de confessar, embora timidamente, estar un poco borracho para jugar. Pero jugué.

Tentava reviver rapidamente a vez que me passara praticamente o mesmo na Colômbia havia alguns anos. Era uma pelada normal e eu formava um time de quatro com mais três doidões de Bogotá, sendo que estávamos no mato, muito longe de lá. Assim que entrei no campo perguntaram minha nacionalidade. Havia muito mais gente assistindo, e a resposta gerou ainda mais ruído do que no caso recente. Naquela ocasião, a recepção estrepitosa do representante do país dos magos da bola foi respondida com um lindo chapéu de chaleira sobre um volante da equipe formada pela gente da terra, que me veio deslizando num carrinho imprudente e sanguinário, levantando a poeira daquele chão batido. O drible, invulgarmente preciso, fora aplicado sobre uma bola que me veio rasteira pela retaguarda da destra e preparou uma finalização fraca, nas pernas do goleiro. Tudo isso logo no primeiro lance!

Lembro vivamente da torcida indo ao delírio com as habilidades que os deuses do futebol resolveram me incutir naquele momento. Dali pra frente, tive uma atuação bastante sólida, ainda que baseada mais na disposição do que na plasticidade daquele lampejo inicial, conseguindo conduzir a algumas suadas vitórias minha improvável equipe de loucos de Bogotá (o goleirão mãos de manteiga era uma figura, que se enfurnava numa rede próxima quando não estávamos jogando e só saia de lá ajudado; e tinha o menino mimado, que cismava em rachar com os cabras com seu tênis de cano longo acolchoado; e o outro cara, mais tranqüilo, que trocava passes decentes comigo).

De volta à praça, me puseram na linha de trás – lugar dos craques – para o teste de fogo. De lá veio, afinal, a bola, em uma trajetória fácil. Mas ela quicou estranha, perto demais de mim. Não tive outra alternativa que tentar matá-la no peito, lançando mão de um fundamento que nunca dominei. Mas a redonda, caprichosíssima, bateu ao mesmo tempo no meu gogó e no meu queixo e caiu, ridícula, em direção aos meus pés plantados no chão pelo mau jeito da jogada. Em desespero, tentei mantê-la viva com um toque curto e acabei me dando conta, apenas ali, que a bola era incrivelmente leve. Assim que toquei nela, a tinhosa assumiu uma direção aleatória e morreu agonizante na extrema direita, completamente fora dos limites do campo!

Os caras foram ao delírio e tardaram alguns minutos para enxugar as lágrimas, de tanto que riram. Amendoins voaram alto e caíram no chão, só então sem graças. O barrigudo, ali ao lado, contrariando todas as expectativas, foi buscar a bola correndo. Respirei fundo e me preparei para devolver um novo saque, que veio ainda mais café-com-leite que o primeiro. Mesmo me posicionando melhor para o toque e tomando ainda mais cuidado, a bola mal encostou no meu pé e saiu em disparada para um lugar improvável, muito outro do que o que pensara, afora o efeito estapafúrdio, também completamente involuntário. Riram mais os emigrados do tal pequeno país perto da Bulgária.

Não me incomodava tanto ser tamanho motivo de chacota, mas estava realmente perplexo por não conseguir domar minimamente direção nem força de meus remates, por mais comedidos ou colocados que tentasse mantê-los. Afinal, fui removido do fundo de quadra e passei à rede, seara dos fanfarrões. E, mesmo ali, mandei mal. Péssimo, para ser exato. Para aumentar a tragicomicidade do momento, pedi um tempo para bater uma bola com meu parceiro e tentar sentir o peso e manias daquela esfera psicodélica! Foram alguns minutos de tentativas frustradas por equívocos de intensidade variada. O parceiro amassava o topete para me indicar: “aqui, com esta parte, com mais calma, com menos força, agora com mais força, menos calma, não, assim não”... Miserável, errava praticamente tudo. Estiquei os momentos de angústia até que o gordinho, careca e fanfarrão, fez o gesto mundialmente conhecido de tocar um relógio imaginário ou real no pulso e perguntar sarcasticamente se passaríamos a noite toda naquele “esquenta”. Pedi perdão, e voltamos para o jogo.

Tive tempo de me surpreender mais uma vez: como os gritos de incentivo ou escárnio durante o jogo eram parecidos com os nossos, apesar da distância entre o português brasileiro e o russárabe dos pequenos países próximos a Bulgária. Cheguei a estar convicto que, em alguns momentos, falavam: vai! E prestava muita atenção nisso principalmente porque, mesmo depois do treino, após nova e breve seqüência de lances escalafobéticos e despropositados, meu companheiro e a dupla adversária conseguiram jogar quase sem me deixar tocar na bola. Já haviam cansado de rir de mim, seguro. Ainda assim, estraguei um ou outro ponto nosso tentando me intrometer na jogada de meu companheiro. Ele ralhava comigo naquela língua absurda. Eu pedia desculpa em espanhol, ou inglês, ou português, ou gritava um “porra, caralho!” reflexivo...

A agonia acabou depois de alguns minutos em que eu me preparava para a chegada de uma bola arisca, que nunca vinha, e ficava fazendo estilo platéia de partida de tênis, bufando um pouco e trocando a base dos pés para afetar participação. Afinal, o mesmo gordinho se dirigiu a mim, agora em espanhol, dizendo algo como “já deu, né!?” Concordei e apertei sua mão, me desculpando rapidamente com ele e com os demais pela total falta de talento. Já ia saindo meio atordoado quando ele me lembrou das coisas que eu havia deixado em cima de um banquinho de alvenaria ao lado da quadra improvisada.

Não tão efusivamente quanto deveria, agradeci a lembrança dos meus pertences, quase abandonados ali: meus cartões de crédito, meu tabaco, meus documentos. Toda a tralha da qual me desfiz buscando maior liberdade de movimentos (que, afinal, se mostrou completamente inútil), sem a qual não seria capaz de atividades singelas como voltar para o meu país, comprar um café, ou fumar um cigarro. Depois desta gentileza imprevista, contudo, algum evento paranormal nublou minha autoconfiança e, com ela, minha confiança em meus nobres colegas. Meu relativismo cedeu e lembrei das recomendações paranóicas que li num daqueles folhetos que há atrás das portas dos quartos de hotel e de algumas outras ponderações alarmistas que recebi sobre a “segurança”, mesmo na Europa, e finalmente refleti que aqueles caras, assim como as molecadas das peladas e a galera da minha rua, eram bem mal encarados. Pensei, por fim, que se eu fosse um gringo fazendo isso no Brasil, não seria impossível que um malandro, rico ou pobre, desse uma conferida na minha carteira atrás de quiçá mirrados trocados.

Maquinalmente e contra a minha mais profunda vontade, saquei a carteira, já enfiada no bolso da bermuda, num movimento furtivo. Abri o zíper, olhando sem ver para ambos os lados. Inclinei a cabeça e fechei um pouco um dos olhos e conferi o conteúdo. Intacto! Intacto? Claro! A vergonha já me subia quando pude novamente dispensar qualquer conhecimento do idioma para entender perfeitamente que um dos caras, que estava fora do jogo, atrás de mim, alertou aos outros do meu gesto desconfiado. Logo eu, que estorvei o futebol na moral deles com minha absoluta falta de intimidade com a bola, que invadi a confraternização bonachona com meu mau jeito e prepotência pentacampeã, que derrubei a lata de cerveja que trazia pela metade e coloquei num lugar exposto, onde acertei uma bola aleatória, derrubando o resto de seu conteúdo no casaco de um deles que estava ali antes? Logo eu!?

Senti o golpe, mas permaneci ali. Continuei prestando atenção no jogo, e entendia muito melhor os desafios de cada lance, o capricho de cada habilidade ou falta dela. Eles também erravam. Muito menos e de forma menos caricata que eu, mas erravam. Minha presença era glacialmente abstraída, mesmo que eu ensaiasse tímidas palmas para os melhores movimentos. O isolamento só foi brevemente quebrado quando executei de forma competente um ruído significando “dificuldade superada” em resposta a uma bela e disputada jogada com final feliz. Cercado de cascas de amendoim e sentado de frente para o meio da quadra e de costas para mim, o gordinho virou um pouco a cabeça, esboçou um sorriso e soltou a mesma gargalhada de sempre. Desta vez, dolorosamente curta. Afoito, tentei perguntar se ele também tentava jogar e cheguei a ensaiar algumas justificativas para o meu fiasco. Ele disse que não jogava. Só.

Quando as duplas ameaçaram trocar os lados, evidenciando o fim do jogo, ainda tive tempo de entender o chiste de um deles perguntando se começariam logo outra partida ou me deixariam jogar mais uma. Todos riram, sem o mesmo entusiasmo, dizendo provavelmente que não. Ou eram meus ouvidos? Me despedi, enfim, e poucos se animaram a fazer o sinal de positivos e retornar minha saudação geral. O do topete, meu parceiro, embora falando ao telefone, foi um dos únicos. O gordinho mais fanfarrão em quadra acenou timidamente, certamente por senso político. Ele que me havia aceitado e recebido inicialmente, afinal. Parti arrependido, alternando um soco em cada mão e batendo os calcanhares um no outro enquanto caminhava, como quem acaba de ser “canetado” num “bobinho” e vai ter que descontar a “mofa”.

Posso estar dramatizando, mas me envergonho muito da ocasião. Não a participação patética no jogo, até porque tenho certeza que com uma bola mais pesada e um pouco menos de cerveja na lata, não faria tão feio quanto fiz, mesmo enferrujado como estou. Mas pela falta de gratidão, falta de gentileza para a gentileza que me haviam dedicado. Ademais, os caras são imigrantes, se reuniam para bater uma bola, praticar seu idioma natal. Provavelmente trabalharam naquele dia, e nos outros, sempre tentando salvar algum para sua distante família. Encontraram uma forma de exercitar suas raízes (aquele futebol moleque, de rua, tão conhecido nosso), ainda que na quadra improvisada no canto da praça. Moram num país que, apesar de precisar deles, faz de tudo para mantê-los numa posição subalterna, que os segrega, que, afinal, concentra e controla quem (e em que medida) tem acesso à riqueza negada (ou usurpada) à sua terra natal... Bem parecido com o que fazem com o meu país! Definitivamente não deveriam ter tolerado o gringo - estrangeiro como eles - vindo discriminá-los, desconfiando deles.

Eles não falaram nada em espanhol ou inglês comigo sobre minha pior, dentre o show de horrores, jogada da noite. Conversaram entre eles, e decidiram me ignorar, apenas. Ainda acho que merecia, ao menos, um esculacho, mas fico grato pela escolha que fizeram. Se ao menos eu tivesse a sagacidade de ter instantaneamente a idéia que tive minutos depois, e dizer logo após conferir a grana, e com sinceridade, que gostaria de pagar uma cerveja para eles, no mínimo pela paciência. Mas não o fiz. Restou-me escrever sobre a jogada, esse lance, e pedir aos bravos leitores que chegaram até aqui que façam um exercício de abstração. Imaginem essa cena numa roda de “altinho” numa praia do rio, ou numa pelada de pedreiro em campo de várzea. Imaginem ainda que o gringo fosse inglês, espanhol, italiano, alemão ou argentino e que tivesse a certeza, como nós, de ter o melhor futebol do mundo... Esse cara não durava dois minutos vivo!

Tomara!

Por fim, confesso que agiria diferente de meus companheiros do pequeno país ao lado da Bulgária se passasse por algo parecido, especialmente dentre amigos. De uma forma que o gringo muquirana pudesse entender perfeitamente, diria alguma descompostura insalubre e tentaria incitar a massa a colocá-lo para correr dali. De preferência para casa dele, fosse ela nos confins da América, ou num canto qualquer da Eurásia. Há coisas que não se pode profanar. E o futebol, talvez “a mais importante das coisas menos importantes” (essa maravilhosa pérola de autoria imprecisa, mas precisão absoluta) obviamente é uma delas. Então, se for jogar, procure entrar com respeito e, sempre, sempre, na humildade máxima. Senão, vaza, Zé Ruela!

domingo, 24 de junho de 2012

Dinamáquina.

Infelizmente me senti na obrigação de escrever sobre a Dinamarca, país que agora visito em companhia de meu filho, Francisco e da minha esposa, Kamira. Infelizmente, porque não suporto minha escrita, mas estar aqui e deixar de dar meu pitaco é mais escroto ainda. Por isso...vamos ao que interessa.

Aqui é foda. Fodidamente organizado. Limpo, mas nem tanto. Eles não são doentes por limpeza.
Os ônibus aparecem na hora marcada e você pode, sem problemas, entrar com o carrinho de criança. De ônibus ou trem se chega em qualquer parte do país, que é menor que o RJ. Possuem população de 5 milhões de humanos. Menor do que a própria população de PORCOS que tem, de oito milhões!!!!
A Dinamarca fica no norte da EUROPA, perto da Suécia e da Noruega. FRIO BAGARAI!!! E olha que viemos no verão. É quase um arquipélago, com uma parte grande continental. A capital não fica no continente! O continente é a parte rural do país. 
Eles possuem realeza, parada que realmente me deixa intrigado. Afinal de contas, que porra é essa??? A essa altura do campeonato???? Esses caras definitivamente me supreendem!!!!! Rainha Margarida o nome da figura!
Estou num bairro chamada Amager. Bairro residencial com algum comércio. Perto do Centro. Copenhagem tem a cara da Europa, eu acho....Prédios antigos, baixos. Cada quarteirão possui vários prédios, uns colados nos outros e no centro deles, há um espaço de uso comum.  E isso definitivamente é IRADO!!!! Pelo simples fato de que há o compartilhamento obrigatório das paradas...

A língua Dinamarquesa é bonita. E tem uma sonoridade que eles próprios desconhecem. Tem traços fortes como a alemã, mas tb a sonoridade do ÉLE que os árabes usam....lel lel lel lel, sacaram?

Visitei alguns lugares realmente incríveis. Castelos, fortes, coisas de uma época em que a coloniza ção portuguesa nem pensava em acontecer.

Existem muitos imigrantes por aqui. De toda parte do mundo. Árabes, japoneses, sul americanos....Então os branquinhos estão começando a se misturar....

Galera..a onda acabou. Conto mais no retorno. Ou no próximo becke.


sábado, 23 de junho de 2012

Poesia Rapadura

A própria sensação física da potência do gostar de ser, definindo-se ao desgostar do desgostável, exercendo-se de forma irreversível pela momentânea falta de macetes adequados para uma subversão mais incisiva do real, ou do nivel, ou do véu imediatamente adiante de seu próprio nariz já ostenta habilidades mágicas...
Cada silêncio reinventa o todo, calcando as memórias de forma imprecisa nas consciências várias.
Quantas?
Brilhos incontestes afloram das frestas mais improváveis. Um cataclisma pessoal para irromper a mais tímida rachadura.

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A prova do crime:



quarta-feira, 2 de maio de 2012

Espinhos


Saía de casa quando fui avisado pelo zelador que o síndico do meu prédio gostaria de conversar comigo. Estranhei a solenidade e o acabrunhamento do cabra, afinal, o Assis é um tipo daqueles em que tendemos a confiar gratuitamente, gente da gente, compadre sangue bom. Barrigudo e bonachão, sua voz, aguda e um pouco fanha, só sabe dizer bondade, concordar contigo, abusar da sinceridade. Como quando perguntei se ele havia, a mando do ex-proprietário, maquiado a infiltração que hoje toma a cozinha do meu apartamento - mas na época da venda não aparecia - e ele disse: pois foi. Preferia ouvir outra resposta, mas admirei o sujeito por falar, quase sem querer, a verdade. Sou um pouco assim também e, até por senso de (auto)preservação da diminuta classe sincericida, busco valorizar simbolicamente as pessoas de traços semelhantes com quem tenho a sorte de assuntar. E aquela breve troca de palavras cúmplices acabou me inspirando ainda mais confiança nele.
Era uma manhã atípica, em que lograra sucesso incomum na sempre engenhosa tarefa de aprontar minha pequena para a creche. Dentro de uma margem plenamente tolerável de atraso, subi as escadas lentamente, com ela avançando na frente, como de costume. No meio do caminho, com a criança já perdida de vista, encontrei dois sujeitos desconhecidos no corredor. Discutiam. Parei, me apresentei, e inquiri sobre o imbróglio certo que um dos dois seria quem me queria falar.
Mas, antes, vim julgando. E não poderiam ser mais diferentes. Um, branquelo, pra lá dos cinqüenta, boca repuxada para baixo (de gente recalcada e triste), olhos claros por trás dos óculos de grau. Expressão fechada e séria, semi-militar. Talvez algum orgulho ordeiro por dentro da camisa de botão com um quadriculado de azul e branco miúdo que minha sonolência fazia parecer um labirinto psicodélico. Seu tipo grave me causava antipatia espontânea.
O outro – um negão, pra cá dos quarenta, cuja estabilidade expressiva era um sorriso absoluto – me olhava com os olhos arregalados a bordo de bermudas, camisa de malha meio zoada e um par de chinelos grotescos. Nem Havaianas eram. Gostei dele, de cara. Tinha o nome de um de meus irmãos, enquanto o outro tinha um daqueles nomes antipáticos começados com dáblio.  Se o assunto fosse complicado, dependendo de quem fosse o síndico, poderia contar com um aliado – como contei, de fato, mas contá-lo me alargaria demais o relato.
Meus preconceitos atuaram de forma branda: não atinar imediatamente para quem era o síndico. Provavelmente, entre outras coisas, dado o estado precário de meu condomínio. Afinal, racionalizar sobre preconceitos com a boca livre e a mente supostamente leve é muito mais fácil que aceitar os incômodos vestígios deles em nós. E tenho certeza que, amparado pelos traços do racismo paterno que a criação bicho-grilo de minha mãe não conseguiu dissolver, se morasse em um prédio mais organizado, teria me dirigido diretamente ao senhor almofadinha para tratar dos tais “assuntos de meu interesse”, sabendo-o único síndico possível (para um prédio bacana) na nossa sociedade racistaem que vivemos.
Exercitando o dom da dúvida, mantive o quanto pude a questão sobre qual dos dois seria, afinal, minha versão genérica de Tim Maia, mas, dirimidas as incertezas iniciais pelas apresentações, acabei informado pelo mais velho que tínhamos um problema... Tentei me conter, mas acabei fazendo uma por vezes dolorosa retrospectiva de minhas atitudes passíveis de crítica frente aos meus arrabaldes, minhas cercanias, e as pessoas que os habitam. Seria o que falo, o que ouço, o que toco, o que fumo, ou o quanto minha namorada grita? Vizinho voyeur insatisfeito com meus recatos, ou vizinho da frente inconformado com meu voyeurismo!?
Tratava-se, contudo, das singelas plantas que viviam no corredor do meu andar, ao lado da porta de entrada. No prédio cheio de fofo, mofo, infiltrações e baratas, alguém acabou se incomodando com o vigor das plantas que eu cultivava, e sobreviviam às intempéries do corredor com exuberância inexplicável para meu eventual desdém.
O síndico “comunicava” afinal, que a administração decidira recolhê-las caso eu não o fizesse. Que pusesse na varanda, sugeriram prestimosos. E pouco adiantou argumentar que o meu apartamento não tem varanda, que a administração somos nós, que as plantas estavam vistosas, lindas, e que aquilo alegrava o ambiente insalubre da escadaria... Estavam na passagem, ponderavam. Tão na passagem – depois descobri – quanto as lixeiras (uma por andar) ou uma outra planta, essa com um vaso de barro pesado demais para ser removido pela força já muita do Assis.
Sei que a política perpassa cada minúcia da vida em sociedade, mas me deu muita preguiça de convocar uma assembléia condominial com o intuito de restaurar o meu direito de colocar plantas na área comum do prédio. Me encabula e dá um pouco de preguiça até mesmo ir a uma reunião ordinária e instigar o tema... Preguiça dessa gente opaca, que vive para azedar a alegria, ainda que pouca, do próximo. Cheguei a ensaiar um protesto, prendendo um bilhete desconexo na parede ao lado das marcas de vazio deixadas pelos vasos. Desenhei também, junto com a Lis, um enorme (quase todo o papel A3) cacto, triste e choroso – onde sequer cheguei a escrever as frases que bolara: “Planta imaginária... Cuidado, ela pode ficar na sua frente!" Mas a figura jamais saiu do cavalete e continua lá, soterrada por levas e levas de novos desenhos.
Arrefecida a ira, deixei tudo para lá... Mais um direito a menos – a gente acaba que acostuma com essa sina. Tento perder a esperança no mundo, mas não consigo. Por mais que mal se precise sair de casa (às vezes, nem isso) para encontrar incontáveis vidas dedicadas ao exercício do máximo de babaquice suportado pela anatomia (da mente) humana, precisamos de pouco para perceber o tanto de energia outra circulando.
A planta que morava no meu corredor, por exemplo, me fora emprestada pelo próprio Assis. Meses atrás, ainda de chegada, perguntei se tinha alguma, ele disse que sim, que ia buscar. E veio um vaso com três espécies diferentes, uma meio murcha, outra quebradiça, a última quase seca. Gostaram, as três, de mim, ou do meu canto. E prosperaram, para orgulho nosso. De fato, não fosse a prestatividade do Assis, eu não entraria em contato (por mais indireto) com a angústia da pessoa que se sentiu incomodada com nossas plantas (!). Mas eu prefiro viver as duas coisas – a euforia da dádiva e a impotência da repressão – à possibilidade de eximir-me tudo, evitando ofender outros medíocres quereres anulando os meus.
O equilíbrio é delicado, não canso de aprender. Por ora, espero sinceramente que as minhas plantas estivessem realmente interrompendo a passagem de pessoas desconcertantemente obesas, ou causando violenta alergia em alguém que aqui passa todos os dias. Aceito que existam estas ou qualquer outra justificativa digna – ainda que estapafúrdia – para o seqüestro vegetal. Enquanto aguardo pelo desfecho, prefiro pensar que minhas antigas vizinhas verdes tiveram ainda melhor sorte em seu novo lar. Quero que possam voltar... maiores! Um dia...

sábado, 28 de abril de 2012

Passando em revista

Veja bem, isto é um absurdo
Desde a época em que a superinteressante era interessante.
Mesmo pequenas as empresas escondem o grande negócio:
Os bravos todos estão exilados no Piauí,
caros amigos nos enviam cartas capitais
explicitando a falta de capricho com a gente.
É nossa National Geographic que está em jogo aqui!
Vai pra casa, Cláudia, e já começa a pensar nisso.
Não dá para todo mundo ser playboy (ao mesmo tempo)!

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Poesia antiga.

Escrevo apenas por pena da moda moderna.
Como quem tempera com o passado.
Pertencendo a espera de um futuro.

No escuro, o claro fica mais evidente. A vida.
E as incertezas mais lúcidas na mente. A morte.

Aqui.....ali......onde quer que esteja,
prefiro o eterno intenso do instante.
O sempre.



domingo, 18 de março de 2012

O sucesso do misticismo

Religiosos normalmente recorrem aos deuses apenas quando dá merda.
Isso me faz pensar.
Toda abordagem mística deveria ser capaz de dar conta da completa realidade. Do gato preto ao Jesus Cristo, do casamento aos travecos da Lapa (e toda sanha de homens casados que os procuram), de Bill Gates a Hitler, da alquimia ao novo iPad, de segunda guerra à Woodstock. Toda a possibilidade do "real" deveria estar contida nesta abordagem, do micro ao macro, da epifania à tragédia.
Isso me faz agir.
Toda minha vida precisa estar coerente com o que acredito, nem que seja preciso mudar o que acredito. A noção mundana de pecado é idiota, pois não oferece solução. Não há pecado, há incoerência e hipocrisia.
"Deixe o desejo do discípulo determinar o que deve ser oferecido aos deuses. O que quer que ele goste, a oferta disso o conduzirá ao bem-estar." (trecho do Mahanirvana Tantra)