Saía de casa quando fui avisado pelo zelador que o síndico do meu prédio gostaria de conversar comigo. Estranhei a solenidade e o acabrunhamento do cabra, afinal, o Assis é um tipo daqueles em que tendemos a confiar gratuitamente, gente da gente, compadre sangue bom. Barrigudo e bonachão, sua voz, aguda e um pouco fanha, só sabe dizer bondade, concordar contigo, abusar da sinceridade. Como quando perguntei se ele havia, a mando do ex-proprietário, maquiado a infiltração que hoje toma a cozinha do meu apartamento - mas na época da venda não aparecia - e ele disse: pois foi. Preferia ouvir outra resposta, mas admirei o sujeito por falar, quase sem querer, a verdade. Sou um pouco assim também e, até por senso de (auto)preservação da diminuta classe sincericida, busco valorizar simbolicamente as pessoas de traços semelhantes com quem tenho a sorte de assuntar. E aquela breve troca de palavras cúmplices acabou me inspirando ainda mais confiança nele.
Era uma manhã atípica, em que lograra sucesso incomum na sempre engenhosa tarefa de aprontar minha pequena para a creche. Dentro de uma margem plenamente tolerável de atraso, subi as escadas lentamente, com ela avançando na frente, como de costume. No meio do caminho, com a criança já perdida de vista, encontrei dois sujeitos desconhecidos no corredor. Discutiam. Parei, me apresentei, e inquiri sobre o imbróglio certo que um dos dois seria quem me queria falar.
Mas, antes, vim julgando. E não poderiam ser mais diferentes. Um, branquelo, pra lá dos cinqüenta, boca repuxada para baixo (de gente recalcada e triste), olhos claros por trás dos óculos de grau. Expressão fechada e séria, semi-militar. Talvez algum orgulho ordeiro por dentro da camisa de botão com um quadriculado de azul e branco miúdo que minha sonolência fazia parecer um labirinto psicodélico. Seu tipo grave me causava antipatia espontânea.
O outro – um negão, pra cá dos quarenta, cuja estabilidade expressiva era um sorriso absoluto – me olhava com os olhos arregalados a bordo de bermudas, camisa de malha meio zoada e um par de chinelos grotescos. Nem Havaianas eram. Gostei dele, de cara. Tinha o nome de um de meus irmãos, enquanto o outro tinha um daqueles nomes antipáticos começados com dáblio. Se o assunto fosse complicado, dependendo de quem fosse o síndico, poderia contar com um aliado – como contei, de fato, mas contá-lo me alargaria demais o relato.
Meus preconceitos atuaram de forma branda: não atinar imediatamente para quem era o síndico. Provavelmente, entre outras coisas, dado o estado precário de meu condomínio. Afinal, racionalizar sobre preconceitos com a boca livre e a mente supostamente leve é muito mais fácil que aceitar os incômodos vestígios deles em nós. E tenho certeza que, amparado pelos traços do racismo paterno que a criação bicho-grilo de minha mãe não conseguiu dissolver, se morasse em um prédio mais organizado, teria me dirigido diretamente ao senhor almofadinha para tratar dos tais “assuntos de meu interesse”, sabendo-o único síndico possível (para um prédio bacana) na nossa sociedade racistaem que vivemos.
Exercitando o dom da dúvida, mantive o quanto pude a questão sobre qual dos dois seria, afinal, minha versão genérica de Tim Maia, mas, dirimidas as incertezas iniciais pelas apresentações, acabei informado pelo mais velho que tínhamos um problema... Tentei me conter, mas acabei fazendo uma por vezes dolorosa retrospectiva de minhas atitudes passíveis de crítica frente aos meus arrabaldes, minhas cercanias, e as pessoas que os habitam. Seria o que falo, o que ouço, o que toco, o que fumo, ou o quanto minha namorada grita? Vizinho voyeur insatisfeito com meus recatos, ou vizinho da frente inconformado com meu voyeurismo!?
Tratava-se, contudo, das singelas plantas que viviam no corredor do meu andar, ao lado da porta de entrada. No prédio cheio de fofo, mofo, infiltrações e baratas, alguém acabou se incomodando com o vigor das plantas que eu cultivava, e sobreviviam às intempéries do corredor com exuberância inexplicável para meu eventual desdém.
O síndico “comunicava” afinal, que a administração decidira recolhê-las caso eu não o fizesse. Que pusesse na varanda, sugeriram prestimosos. E pouco adiantou argumentar que o meu apartamento não tem varanda, que a administração somos nós, que as plantas estavam vistosas, lindas, e que aquilo alegrava o ambiente insalubre da escadaria... Estavam na passagem, ponderavam. Tão na passagem – depois descobri – quanto as lixeiras (uma por andar) ou uma outra planta, essa com um vaso de barro pesado demais para ser removido pela força já muita do Assis.
Sei que a política perpassa cada minúcia da vida em sociedade, mas me deu muita preguiça de convocar uma assembléia condominial com o intuito de restaurar o meu direito de colocar plantas na área comum do prédio. Me encabula e dá um pouco de preguiça até mesmo ir a uma reunião ordinária e instigar o tema... Preguiça dessa gente opaca, que vive para azedar a alegria, ainda que pouca, do próximo. Cheguei a ensaiar um protesto, prendendo um bilhete desconexo na parede ao lado das marcas de vazio deixadas pelos vasos. Desenhei também, junto com a Lis, um enorme (quase todo o papel A3) cacto, triste e choroso – onde sequer cheguei a escrever as frases que bolara: “Planta imaginária... Cuidado, ela pode ficar na sua frente!" Mas a figura jamais saiu do cavalete e continua lá, soterrada por levas e levas de novos desenhos.
Arrefecida a ira, deixei tudo para lá... Mais um direito a menos – a gente acaba que acostuma com essa sina. Tento perder a esperança no mundo, mas não consigo. Por mais que mal se precise sair de casa (às vezes, nem isso) para encontrar incontáveis vidas dedicadas ao exercício do máximo de babaquice suportado pela anatomia (da mente) humana, precisamos de pouco para perceber o tanto de energia outra circulando.
A planta que morava no meu corredor, por exemplo, me fora emprestada pelo próprio Assis. Meses atrás, ainda de chegada, perguntei se tinha alguma, ele disse que sim, que ia buscar. E veio um vaso com três espécies diferentes, uma meio murcha, outra quebradiça, a última quase seca. Gostaram, as três, de mim, ou do meu canto. E prosperaram, para orgulho nosso. De fato, não fosse a prestatividade do Assis, eu não entraria em contato (por mais indireto) com a angústia da pessoa que se sentiu incomodada com nossas plantas (!). Mas eu prefiro viver as duas coisas – a euforia da dádiva e a impotência da repressão – à possibilidade de eximir-me tudo, evitando ofender outros medíocres quereres anulando os meus.
O equilíbrio é delicado, não canso de aprender. Por ora, espero sinceramente que as minhas plantas estivessem realmente interrompendo a passagem de pessoas desconcertantemente obesas, ou causando violenta alergia em alguém que aqui passa todos os dias. Aceito que existam estas ou qualquer outra justificativa digna – ainda que estapafúrdia – para o seqüestro vegetal. Enquanto aguardo pelo desfecho, prefiro pensar que minhas antigas vizinhas verdes tiveram ainda melhor sorte em seu novo lar. Quero que possam voltar... maiores! Um dia...